A Viagem

Não sabia que a filha era tão organizada. Pastas com documentos, malas bem
ajeitadas,remédios,livros.Dentro de uma pequena caixa,a prótese dentária que
tanto relutava em usar.
-O Miguel vai passar daqui a pouco.
A decisão dos filhos estava tomada quando ela veio conversar.As quedas
constantes,o problema da visão,a depressão.
De onde estava era o perfil da mãe.
- Veja a fotografia do retiro.Não lhe faltará nada.
- No fim de semana poderemos levar os meninos.
Não evitou um grito surdo de amargura.Como era difícil a separação do
pouco que restava.Raros os diálogos com os filhos,sempre ocupados com
alguma coisa que deveria ser importante.Ah,os meninos!Rejuvenecia,re-
cuperava energia.Inventava histórias,cantarolava antigas canções,fazia um
pequeno espetáculo de mágicas.”Vovô é um cara legal”.Era a frase que o
sustentava em muitas ocasiões.
- Não esqueça o seguro saúde.
De repente um frio estranho,talvez por não ter avaliado a verdadeira distância
de sua tênue esperança.Ou apenas febre,seguida de confusas figuras desiguais,
mascaradas e disformes que teimavam em turvar a vista.
- É com o aluguel deste apartamento que poderemos oferecer sua tranquilidade
Pegou a bengala e resolveu olhar todos os cantos da casa.O toque da madeira
no chão era infernal,por raiva ou delírio.A filha continuava falando.
Procurava por mínimas lembranças,apalpando locais que ainda pareciam ter vida .
.Se tivesse forças,rolaria como criança,abraçando tapetes,vasos,sujando a roupa
e o corpo com o pó que talvez ainda fosse de tempos idos .
O que ela dizia agora?Sentou-se na cadeira de sempre,fez o mesmo sinal que a mulher
entendia como hora da refeição e depois ouviriam as notícias,dividindo dúvidas e
alegrias.
- Vista-se rápido senão chegaremos atrasados
- Estão tocando.Deve ser o Miguel.
- Preciso ir ao banheiro.
Atravessou o corredor sob um coro de vozes,como anunciando cada passo,cada gesto.
.No quarto passou levemente as mãos na sua cama.Inspirou com força,carregando
para dentro de si restos de felicidade,risos de tantas noites,belas loucuras que só
agora compreendia.Fechou a porta do banheiro.
.O cheiro de tudo o perseguia.Pela fresta da janela,uma nesga do mar e derradeira
união de sol,luz,verde água.Abriu com cuidado a gaveta.Uma caixa de remédios para
noites insones.Não tinha pressa.
As batidas na porta e a voz que implorava já não incomodavam.Desenhou
um coração com os vinte comprimidos.Começou pela parte de cima e ia se
oferecendo com orgulho e respeito.Fez um esforço para os últimos que teimavam em
fugir a seu controle.Não podia errar.Se espantou de ainda poder pensar.E juraria
que eram da sua mulher os braços que,com cuidado,o apoiavam na lenta queda em
direção a seu livre destino.

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